O bitcoin pode ser moeda oficial? El Salvador tenta descobrir à força

Os defensores do bitcoin sonham com um sistema financeiro totalmente livre da influência do governo. Mas, quando essa criptomoeda se tornou moeda nacional pela primeira vez, foi imposta a um povo relutante por um governante cada vez mais autoritário e por meio de um sistema estatal pouco transparente.

Em setembro, o anúncio de que El Salvador havia adotado o bitcoin, a maior criptomoeda do mundo, como moeda corrente surpreendeu a população e fez desse país pobre e conservador da América Central um dos pioneiros improváveis de uma transformação tecnológica.

O resultado desse experimento pode determinar se a criptomoeda será capaz de oferecer a liberdade de regulamentação que seus defensores preveem – ou se ela se tornará mais uma ferramenta de controle e enriquecimento para autocratas e corporações.

“Estamos vivendo um momento de virada para as criptomoedas. As tecnologias da liberdade podem se tornar parte de uma nova distopia tecnológica”, disse Lane Rettig, empreendedor e antigo programador sênior da Ethereum Foundation, a organização responsável pelas tecnologias por trás do Ethereum, a segunda maior criptomoeda do mundo.

A ameaça de que governos e empresas subvertam as raízes libertárias das criptomoedas lembra, em parte, a evolução de tecnologias digitais como a internet e as redes sociais, de acordo com Rettig. Ele acrescentou que, baseadas na premissa democrática da liberdade de informação e da conexão entre as pessoas, essas inovações se mostraram vulneráveis à censura, à manipulação por propagandistas e ao controle por parte de corporações orientadas para o lucro.

E, agora, governos de todo o mundo estão buscando maneiras de se adaptar a um setor crescente, avaliado em US$ 2 trilhões, à medida que ele começa a trazer efeitos negativos ao sistema bancário e a fazer parte do dia a dia das pessoas.

Em junho, o presidente populista Nayib Bukele, de 40 anos, anunciou que tornaria o bitcoin –token financeiro altamente volátil operado por uma comunidade descentralizada de empreendedores de tecnologia – a moeda oficial do país, com as mesmas funções da atual moeda corrente de El Salvador, o dólar americano. “Isso vai gerar empregos e oferecer inclusão financeira para aqueles que não fazem parte da economia formal”, declarou Bukele em um discurso televisionado, acrescentando que isso tornaria o país um destino turístico e de inovação.

A ideia surgiu de um experimento social iniciado em 2019 pela cidade de El Zonte, conhecida pelo turismo do surfe em El Salvador, na qual ativistas utilizaram uma doação de bitcoins para criar uma rede local de pagamentos por meio da criptomoeda. O projeto, Bitcoin Beach, superou a desconfiança dos habitantes ao integrar a moeda no dia a dia, usando o bitcoin para premiar estudantes que faziam a lição de casa e para oferecer ajuda financeira às famílias durante a pandemia. “Nossa estratégia de criar um ecossistema em que o bitcoin funcionasse se baseou em dois elementos: o tempo e a confiança”, explicou Luis Morales, um dos organizadores do Bitcoin Beach.

Esses dois elementos estão visivelmente ausentes da estratégia de Bukele.

De acordo com uma pesquisa realizada pela Câmara do Comércio de El Salvador, empresários, organizações internacionais e 93 por cento da população salvadorenha são contrários à adoção do bitcoin.

Ainda assim, aproveitando-se do controle exercido por Bukele sobre o congresso e os tribunais do país, no dia sete de setembro o governo obrigou o país todo a aceitar o bitcoin – medida que deu origem aos maiores protestos dos últimos anos nas ruas de El Salvador e retirou parte do enorme apoio popular de Bukele.

“Todos compreendemos que as criptomoedas são o futuro, mas não é possível incentivá-la obrigando todo mundo a usá-la”, afirmou Jorge Hasbún, presidente da Câmara de Comércio.

Para incentivar o uso da moeda, o governo criou um aplicativo para celular – o Chivo Wallet – que permite que as pessoas, inclusive muitas que não têm conta bancária, enviem e recebam bitcoins, convertam esses valores em dólar e façam saques em caixas eletrônicos especiais. O governo também deu o equivalente a US$ 30 em bitcoins para cada salvadorenho que usar a carteira.

Mas o aplicativo está repleto de problemas técnicos e muitos caixas eletrônicos ficaram sem dinheiro, à medida que as pessoas correram para converter o bitcoin em notas de dólar, que são muito mais estáveis.

O governo também anunciou ter separado US$ 150 milhões, ou o equivalente a 12 por cento do orçamento público de El Salvador no ano passado, para garantir que o bitcoin seja livremente convertido em dólar. As autoridades não explicaram como evitarão que o bitcoin seja usado para lavar dinheiro, nem o que aconteceria se o fundo de conversão ficasse sem dinheiro.

Apesar da falta de fundos públicos, Bukele anunciou em uma série de tuítes que o governo havia comprado cerca de 30 milhões de dólares em bitcoin no mês passado. Quando o preço da criptomoeda despencou rapidamente, pouco tempo depois, ele anunciou novas compras, sem explicar o motivo.

Quase um mês depois da introdução do bitcoin, ainda não se sabe onde estão as reservas de dólar e de bitcoin mantidas pelo governo – ou que estão disponíveis no aplicativo Chivo Wallet –, nem quanto elas valem.

Embora todas as transações com bitcoin tenham um código específico para garantir a transparência, Bukele tem tratado a política do bitcoin como um segredo de Estado. Ele tornou secretas todas as informações relacionadas ao Chivo Wallet, que foi criado com dinheiro do contribuinte, mas que é mantido por uma empresa privada controlada por proprietários não divulgados.

“Ele está jogando roleta-russa com o dinheiro público”, disse Ruth López, advogada salvadorenha da ONG Cristosal, que processou o governo por irregularidades financeiras em torno do Chivo Wallet.

Bukele, seus ministros da economia e das finanças, o secretário de comércio, o procurador-geral, o chefe do comitê econômico do congresso, a agência reguladora, o banco central e o banco público que mantém os bitcoins se negaram a comentar.

Nas ruas, o impacto da política foi misto.

Bukele declarou que três milhões de salvadorenhos, ou mais da metade dos adultos do país, haviam instalado o Chivo Wallet no celular até o início de outubro. Mas, na realidade, o uso do bitcoin ainda é limitado. A maioria das pessoas teme a volatilidade extrema nos preços da criptomoeda, afirma não ter conhecimento da tecnologia ou não confia nas intenções do governo.

A criptomoeda, porém, permitiu que ao menos alguns salvadorenhos sem conta em banco tivessem acesso a pagamentos digitais, pudessem investir na poupança ou faturassem um pouco mais, e seu uso tem ganhado força entre os mais jovens.

Na cidade de San Miguel, a família Argueta Pérez contou que a venda de roupas estilo streetwear em sua banca em um mercado de rua aumentou desde que colocou uma placa dizendo que aceita pagamento em bitcoin.

Perto dali, Laura Trejo, estudante de 29 anos, fazia fila em um caixa eletrônico Chivo para retirar uma quantia enviada por seu tio, sem precisar pagar comissão pelo saque. Ao seu lado, José Ercidio, verdureiro de 50 anos, esperava sua vez. Ele afirmou que o Chivo Wallet permitiu que os clientes transferissem valores mais baixos, aumentando suas vendas: “Isso é um benefício para os mais pobres e humildes.”

No mês passado, Bukele, em uma aparente piada dirigida aos críticos, mudou seu perfil no Twitter, incluindo a descrição: “O ditador mais legal do mundo.” Mas, à medida que ele consolida o poder e ataca os oponentes, muitos em El Salvador temem que a adoção do bitcoin tenha sido mais motivada por sua busca de controle do que por seu desejo de inclusão financeira.

À medida que Bukele ampliou o controle, as relações com o governo Biden se deterioraram, levando Bukele a temer a grande influência de Washington sobre a economia do país, de acordo com duas autoridades salvadorenhas que conhecem o pensamento do presidente. Os dois não quiseram revelar sua identidade para evitar represálias.

Por exemplo, as remessas enviadas por imigrantes, especialmente dos EUA, representam um quarto do PIB nacional. Ao construir um sistema financeiro paralelo baseado em criptomoeda, Bukele pode evitar o sistema bancário dos EUA e permitir que as transferências internacionais continuem a ser feitas por meio do Chivo Wallet caso Washington resolva fazer alguma pressão econômica no futuro, segundo as duas autoridades salvadorenhas.

Acredita-se que outros países que já enfrentam sanções, como a Venezuela e a Coreia do Norte, estejam usando criptomoeda para evitar o controle externo.

“Para o governo, o bitcoin representa um plano B”, disse Ricardo Castaneda, especialista salvadorenho em políticas públicas.

Agora, o governo está procurando formas de emitir títulos da dívida pública ligados ao bitcoin, e de criar novos bitcoins com energia geotérmica. As duas medidas poderão criar fontes alternativas de financiamento, fugindo dos credores tradicionais, que exigem responsabilidade fiscal, de acordo com especialistas. “O que Bukele está fazendo não é bitcoin, mas um sistema bancário centralizado e estatizado. Essa é a antítese dos princípios defendidos pelo bitcoin”, apontou Mario Gómez, especialista salvadorenho em dados, que foi detido pela polícia e passou seis horas na delegacia no mês passado por acusações não especificadas de crimes financeiros, depois de organizar seminários virtuais sobre os riscos da criptomoeda.

The New York Times

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *