Ilha do Ferro, em Alagoas, entra no mapa como polo da cultura popular do Nordeste

Um lugar onde as pessoas se encantam, se surpreendem, se extasiam. Um lugar de belezas únicas e fortes contrastes. Onde a imagem do solo quente, ressecado e rachado vai de encontro ao espelho d’água do Rio São Francisco e fertiliza o imaginário dos moradores, acostumados com o lamento sertanejo, e dos visitantes. A paisagem triste é substituída por animais fantásticos, esculturas coloridas, gaiolas elaboradas, bonecas de pano, bordados magníficos e platibandas características do casario local. É um cenário de riqueza de formas, cores, temperaturas. A Ilha do Ferro é um pequeno povoado no sertão de Alagoas, localizada na cidade Pão de Açúcar, a 235km de Maceió, às margens do Rio São Francisco. Do centro de Pão de Açúcar até a Ilha do Ferro são 15km de estrada de chão, margeada por mandacarus, xiquexiques, macambiras e catingueiras. Mas também é possível chegar de barco, no caminho do Velho Chico (um dos destaques, aliás, é a corrida de canoas ornamentadas que vez ou outra acontece por lá).

Nessa ilha que não é ilha, o povoado que está oculto na maioria dos mapas ganhou o mundo. Desconhecido até por alguns alagoanos, é considerado uma joia rara por amantes da arte popular. As esculturas da Ilha do Ferro podem ser vistas em galerias, exposições, coleções particulares e projetos de arquitetos. Algumas peças já foram expostas ao lado de obras dos Irmãos Campana e muitas esculturas decoram lojas mundo afora da carioca Farm.

Portas abertas

A Ilha do Ferro tem atraído turistas que buscam arte popular diretamente da fonte e experiências de viagem que vão além do olhar e não se traduzem apenas em palavras.

Os ateliês são nas próprias casas dos artesãos e estão sempre abertos, não precisam de agendamento. É só chegar. A infraestrutura da ilha ainda é limitada e são raros os estabelecimentos comerciais. Além da mercearia Sandes e do Salão (bar-brechó de André Dantas), há apenas três locais onde servem almoço e café da manhã: a Pousada da Vana, o Restaurante da Telma e o Refeitório da Bia. Para pernoitar, existem duas pousadas (da Vana e Redário) e algumas casas preparadas para receber turistas, que são batizadas pelos seus donos: Casa Abílio e Hostel Tubarana, Casa da Estrelinha e Toca do Frei, Casa Jaque, Casa do Ateliê Boca do Vento, Casa Lua e Estrela e Casa Zabilinha (que dizem ter sido parada de Lampião na região). No caso de refeições e hospedagens, é preciso reservar com antecedência.

O povoado de Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: RicardoLedo / Agência O Globo
O povoado de Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: RicardoLedo / Agência O Globo

Além das visitas aos ateliês, um programa é o encontro com o Velho Chico. Nadar nas suas águas ou passear nas embarcações e visitar outras comunidades ribeirinhas é uma experiência inesquecível. Vale a pena ver que a inspiração artística irradia em diversos cantos.

Num dos acessos ao rio, é possível visitar uma cooperativa de bordadeiras, a Art-Ilha. Mulheres de todas as idades se reúnem para fazer os bordados boa noite, nome de flor nativa e técnica quase extinta. Foi isso que levou o fotógrafo Celso Brandão até Ilha do Ferro e que encantou a designer Paula Ferber, que também tem casas lá.

— A delicadeza me conquistou, e o trabalho da cooperativa é incentivar e manter esse conhecimento tão antigo naquele lugar tão mágico — afirma Paula, que vai duas ou três vezes por ano para a Ilha do Ferro.

As bordadeiras desfiam o tecido e fazem desenhos com agulhas e linhas, geralmente com temas florais. Elas estão por todo o lugar, unidas pelo ofício na cooperativa ou sentadas sozinhas nas calçadas, na frente de suas casas, segurando o bastidor e com a agulha em movimento no corte de linho.

Linhas retas

A estrada de terra que chega a Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Ricardo Ledo / Agência O Globo
A estrada de terra que chega a Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Ricardo Ledo / Agência O Globo

Quem anda pelas ruas de Ilha do Ferro pode ver placas na frente das casas que identificam que ali é casa de artesão. “Alagoas feita à mão” é um programa do governo estadual, criado em 2015, para apoiar a produção e a comercialização da arte popular, como incentivo aos artesãos e manutenção da identidade cultural e artística nordestina. Em 2017, por meio de uma lei municipal de Pão de Açúcar, Ilha do Ferro e suas manifestações artísticas foram consideradas patrimônio cultural. Todas as edificações devem ser preservadas com as características originais e todas as fachadas, respeitar a tradição arquitetônica sertaneja do Baixo São Francisco.

A Ilha do Ferro pode ser “vista” por diversas janelas, e um dos destaques no leque de preciosidades do povoado é a arquitetura das casas, com as platibandas e fachadas coloridas. A platibanda é uma faixa vertical que emoldura a frente de uma casa, escondendo o telhado. O tipo de ornamento mostra uma estética limpa, com linhas retas, simétricas e com desenhos geométricos, visto também em outras cidades do Nordeste. Observar cada casa decorada de forma peculiar — os desenhos das fachadas, a combinação de cores e os bancos e vasos de mandacarus — é um prazer à parte.

Projeção nacional

Canoas na Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Ricardo Ledo / Agência O Globo
Canoas na Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Ricardo Ledo / Agência O Globo

Pássaros com cabeças humanas, pessoas com raízes nos pés, bailarinos em forma de galhos, lagartos de duas cabeças, árvores giratórias, bancos de três pés, lagartos de sete pernas, sereia, nego d’água e outros seres fantásticos fazem parte do imaginário do universo dos artesãos da Ilha do Ferro. Aberaldo, Petrônio, Yang, Vieira, Vavan, Faguinho, Zé Crente, Leno, Valmir, Dedé, Morena, Jailton, Genauro, Eraldo, Wandinho são alguns dos nomes de destaque.

O reconhecimento, a demanda e a garantia de um próspero meio de sustento têm multiplicado o número de pessoas que se dedicam à arte: dos 500 moradores, pelo menos cem vivem da artesania. São pescadores, barqueiros, pedreiros, pintores, donas de casa, carpinteiros — e até um coveiro — que dividem seu tempo de trabalho com o ofício criativo. Alguns deles deixaram a profissão original no passado e rezam para o dia ter mais de 24 horas para dar conta das encomendas. É o caso do ex-coveiro Zé Crente:

— Vivo só da arte e não dependo de ninguém. Se eu fizer dez peças vendo dez peças, se fizer mil, vendo mil — conta Zé Crente, que há três anos trabalha somente com esculturas.

Ele faz parte de uma geração que recebeu a influência de Fernando Rodrigues dos Santos (1928-2009), o primeiro artesão da Ilha do Ferro, que ensinou a arte de esculpir madeira para outros moradores e ampliou horizontes, trazendo novas perspectivas para o povoado.

Um dos artesãos mais conhecidos é Edvan Alves Lima, o Vavan, que faz esculturas de uma versão masculina de sereia, que muitos moradores afirmam que é o nego d’água, uma lenda das águas do Rio São Francisco.

— Sabia que ia crescer no meu trabalho, mas não imaginava tanto. Há pouco tempo, vendia um lustre por R$ 250 e hoje vendo por R$ 2 mil e não tenho nenhum pronto — conta ele, num relato que mostra como a alta demanda e valorização das peças são uma realidade depois que artesãos locais tiveram projeção nacional.

Ilha do Ferro, povoado em Alagoas às margens do Rio São Francisco Foto: RicardoLedo / Agência O Globo
Ilha do Ferro, povoado em Alagoas às margens do Rio São Francisco Foto: RicardoLedo / Agência O Globo

Um dos principais responsáveis por divulgar a arte da Ilha do Ferro é o fotógrafo Celso Brandão, que conheceu o povoado na década de 1980.

— Cheguei para fotografar os bordados conhecidos como “boa noite” e conheci Fernando (Rodrigues dos Santos) e os bancos e mesas que ele fazia, com madeiras que vinham da caatinga ou eram trazidas pelo Rio São Francisco— lembra Celso, que era professor de Fotografia da Universidade Federal de Alagoas e produziu o livro “Ilha do Ferro” (Sensible Édition).

O empresário Mario Cirri também é um dos admiradores da Ilha do Ferro e há quase 20 anos decidiu comprar uma casa no povoado:

— Fiquei encantado com aquele lugar parado no tempo. Ninguém tinha carro ou moto, e a locomoção era feita só por barco ou por animal.

Rua de Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Ricardo Ledo / Agência O Globo
Rua de Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Ricardo Ledo / Agência O Globo

O alagoano André Dantas deixou para trás o trabalho num escritório financeiro para se dedicar a projetos artísticos no povoado. Dono do bar-brechó Salão, ele coordena um projeto para artistas residentes, o Cabra, e hospeda turistas na Casa Abílio e no Hostel Tubarana.

São as riquezas e as potências do lugar que também atraem o casal de artistas plásticos Maria Amélia Vieira e Dalton Costa Neves, donos da galeria Karandash, em Maceió.

— Conheci aquela parte do sertão de Alagoas intocado, com pouquíssimos artesãos, e Fernando era o primeiro e o principal, que criava bancos, inventava histórias e colocava seus versos gravados na madeira — diz Maria Amélia.

Peças de museu

O bar-brechó Salão, no povoado de Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Agência O Globo
O bar-brechó Salão, no povoado de Ilha do Ferro, em Alagoas Foto: Agência O Globo

O arquiteto Rafael Brandão também se apaixonou pelo lugar. Ele é responsável pela reforma da casa onde fica o Museu da Ilha do Ferro e ano passado decidiu alugar uma casa no povoado para morar e montar a galeria Dom.

O Espaço de Memória Artesão Fernando Rodrigues dos Santos (ou Museu da Ilha do Ferro) tem uma exposição permanente que representa todo o trabalho desenvolvido no povoado.

— Aqui a arte encontrou solo fecundo. As mulheres, inspiradas na rede de pescar e sob influências europeias do período colonial, produzem lindos bordados. Os homens, instigados pelo mestre Fernando Rodrigues, aproveitam a madeira morta e as carcaças de barcos que descem nas enxurradas de Opará e produzem mobiliários e esculturas de tirar o fôlego — diz o diretor do museu, Jairo José Campos da Costa.

O Globo

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