Brasil fica refém da polarização entre o bolsonarismo e o petismo

Na última segunda-feira, com uma canetada, o ministro Edson Fachin do STF reescreveu a história e mudou o curso político do País. Sua decisão de anular todas as sentenças de Lula na Lava Jato surpreendeu todos e terá um impacto profundo no ambiente institucional. A medida não redesenhará apenas as eleições de 2022. Desde já, mudará o governo Bolsonaro.

O presidente usará todo seu arsenal populista para se fortalecer diante do petista, deixando de lado as promessas reformistas que o elegeram. O resultado é o agravamento do que já se vê na prática. Inflação em alta, real derretendo, desemprego batendo recordes, investidores fugindo e empresários paralisando negócios. Consultorias já reveem suas projeções e apostam em taxas de juros mais altas e PIB mais fraco. “A decisão coloca um outro patamar de risco que acompanhará o Brasil nos próximos dois anos”, diz o relatório da MB Associados.

A reabilitação de Lula ocorre quando Bolsonaro enfrenta o caos na Saúde e o Congresso, com o apoio dos governadores, ensaia uma intervenção branca na sua gestão

 

“Se o povo brasileiro quiser votar no Lula, paciência. Mas todos nós entendemos o que acontece, o que ele fez e deixou de fazer”
Hamilton Mourão, vice-presidente (Crédito:Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Esse clima de insegurança deverá aumentar porque Bolsonaro vai, mais do que nunca, governar de olho nos índices de popularidade, sem medir as consequências de seus atos. Foi assim que Dilma Rousseff quebrou o País em 2014. Os programas populistas de Bolsonaro, afinal, se assemelham a bandeiras históricas do petismo. Ao falar da Petrobras em seu primeiro pronunciamento após a decisão do STF, na quarta-feira, 10, Lula fez um discurso intervencionista, alinhado ao desejo do atual presidente. Atacou as privatizações. O petista disse que as empresas que estão “comprando coisas da Petrobras” deveriam ficar com medo porque muito pode ser mudado caso o PT volte ao governo. Também defendeu a volta do crescimento baseado em investimento público — o que é praticamente impossível. As ações convergem. O partido de Lula apresentou uma emenda para retirar os gatilhos da PEC Emergencial em tramitação no Congresso. É exatamente o que o próprio presidente queria, tentando driblar seu ministro da Economia. No final, a PEC foi desidratada e as promoções e progressões das carreiras do funcionalismo serão mantidas mesmo em caso de calamidade, minando uma das principais travas para o crescimento da dívida. A intervenção na Petrobras já havia acontecido exatamente para abaixar o preço do diesel e favorecer os caminhoneiros, que apoiam o presidente. O corporativismo, que está no DNA do PT, também fundamenta a lógica eleitoral de Bolsonaro.

A decisão de Edson Fachin foi uma manobra para tentar preservar a Lava Jato. Queria evitar um efeito cascata de anulações de processos. Ele invalidou as condenações de Lula na operação, mandou quatro investigações para a Justiça Federal de Brasília e devolveu os direitos políticos ao petista, já que não se enquadra mais na Lei da Ficha Limpa. As provas podem ser mantidas e Lula deverá enfrentar novamente os processos em Brasília. Fachin agiu para se antecipar a Gilmar Mendes, inimigo declarado da Lava Jato, que previa colocar na pauta da Segunda Turma do STF no dia seguinte o julgamento da suspeição de Moro no caso do tríplex do Guarujá, como de fato ocorreu. O placar acabou empatado, com dois votos para cada posição. Kassio Nunes Marques, ministro indicado por Bolsonaro, pediu vista do processo, mas tudo indica que seguirá o voto de Gilmar Mendes.

A reabilitação de Lula ocorre no penúltimo ano da gestão Bolsonaro, quando o presidente enfrenta o caos na Saúde e fica claro que seu governo não conseguirá reativar a economia. É também o momento em que o Congresso, com o apoio dos governadores, ensaia uma intervenção branca para driblar a inação na pandemia. Por causa disso, o presidente já deu um cavalo de pau em sua campanha para desacreditar as vacinas, tentando viabilizar às pressas as compras de imunizantes que sempre boicotou. Também passou a usar máscaras em público e a defender a imunização. No dia em que Lula deu sua entrevista coletiva, Flávio Bolsonaro divulgou um post dizendo que “dezenas de milhões de brasileiros” serão vacinados acompanhado do slogan: “Nossa arma é a vacina”. Foi uma resposta ao novo risco que o bolsonarismo vai enfrentar. O presidente já discute ampliar o programa Bolsa Família e o próprio auxílio emergencial para enfrentar a ameaça Lula. Em uma referência indireta ao petista, disse que criou o coronavoucher , o “maior programa social do mundo”.

PAZ E AMOR Ex-presidente foi surpreendido pela decisão de Edson Fachin e diminuiu o tom agressivo. Tentou se mostrar confiante, sereno e conciliador: “Tinha certeza que esse dia chegaria, e ele chegou” (Crédito:WERTHER SANTANA)

Bolsonaro fez até hoje um governo incompetente, e isso torna fácil qualquer aceno de racionalidade e conciliação ao centro, como agiu Lula em seu discurso. O presidente sempre esteve interessado na polarização. Já contava com a reabilitação de Lula, que seria conveniente para sua reeleição. Mas pode ter errado na dose ao patrocinar o enterro da Lava Jato. Lula é a nêmesis de Bolsonaro, e ainda pode se tornar um candidato forte para as próximas eleições, apesar do desgaste dos escândalos de corrupção. Isso embaralha e precipita a corrida eleitoral do próximo ano.

Eleições de 2022

A reviravolta já levou vários partidos a redesenharem suas estratégias. O centro pode ficar espremido entre os dois polos, como já aconteceu em 2018. O PSDB antecipou as primárias que escolherão o candidato à presidência para outubro. “A polarização favorece os extremistas que destroem o País. Já destruíram uma vez e estão completando o serviço com Bolsonaro”, disse Doria. O apresentador Luciano Huck divulgou rapidamente uma mensagem: “figurinha repetida não completa álbum”, escreveu (Lula disse que ficou “chateado”, uma forma de tentar cooptá-lo). Ciro Gomes, do PDT, que contava “tirar o PT do segundo turno”, elogiou a anulação das condenações, mas disse que “Lula faz parte do problema brasileiro” (Lula retrucou dizendo que Ciro precisava “se reeducar”). Guilherme Boulos, que contava em ganhar o protagonismo da esquerda no pleito, já aderiu ao líder petista e correu para apoiá-lo. Com isso, o PSOL, assim como outros partidos de esquerda, provavelmente voltarão a ocupar o papel de satélites do petismo. O próprio Moro, que tem alto potencial eleitoral e é cortejado por muitos partidos, deve se retrair, e provavelmente não concorrerá.

ESCANTEADO Ciro Gomes é um dos mais prejudicados com o novo cenário. Elogiou a reabilitação de Lula, mas disse que ele é “parte do problema brasileiro” (Crédito:NELSON ALMEIDA)

É um cenário devastador para o País, que afunda no populismo. Petismo e bolsonarismo são duas faces da mesma moeda, dois grupos cada vez mais radicais que promovem o aparelhamento da máquina pública e o enfraquecimento das instituições. Mesmo governando por 13 anos seguidos, o PT sempre resistiu a deixar o poder e com isso permitiu o surgimento do bolsonarismo, que só floresceu por ser um movimento de negação ao petismo. Desde então, o País virou refém dessas duas correntes, cada vez mais radicais, que se alimentam mutuamente. A crise que o País deve assistir nos próximos dois anos é a mesma que já antecedeu as eleições de 2002. Nessa ocasião, o PT já havia empurrado a economia para o abismo ameaçando o “mercado” com propostas irresponsáveis. Só mudou o discurso poucos meses antes do pleito, com a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, que garantiu a adesão à plataforma econômica do governo de FHC — a que garantiu os anos de crescimento em seu governo.

Sem autocrítica

Ao fazer seu discurso, Lula se recusou a fazer qualquer autocrítica para os erros do PT. Segundo declarou, a Lava Jato “desapareceu” de sua vida e suas amarguras estão superadas. “Eu tinha tanta confiança e consciência que esse dia chegaria, e ele chegou”, disse. Para o cientista político Márcio Coimbra, da Universidade Mackenzie, “Lula vai vai defender o seu período de governo, antes da Dilma. E Bolsonaro vai ter que entregar resultados contra a pandemia com uma economia em declínio”. Ricardo Ismael, cientista político da PUC-RJ, diz que a consequência imediata da decisão é uma polarização entre Lula e Bolsonaro, reeditando 2018. “Ainda estamos muito distantes do pleito, mas no primeiro momento ela vai aumentar”, afirma. O petista já monta sua estratégia de campanha. A reedição das “caravanas”, que o PT já usou em diversas ocasiões, está descartada por conta da pandemia. A pedido de Lula, Fernando Haddad já tenta articular com nomes de centro, como o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil. No Rio, terá um encontro com Marcelo Freixo, do PSOL e deve se reunir com líderes religiosos. O PT se animou com a manifestação de Rodrigo Maia (DEM), ex-presidente da Câmara, que fez elogios a Lula nas redes sociais em contraponto a Bolsonaro. Como Maia deve deixar o DEM, provavelmente para o MDB, e estava por trás da fracassada frente anti-Bolsonaro que disputou a direção do Congresso, seria mais um nome do centro para atenuar a imagem extremista do partido. “Quem mais ganha com a decisão do STF é a esquerda. Quem mais perde é a esquerda não lulista”, diz a cientista política Juliana Fratini. “Lula tem habilidade para cooptar o Centrão a seu favor, sem constrangimentos.”

SOB ATAQUE A ofensiva sobre a Lava Jato coloca Sergio Moro na berlinda. Ele provavelmente não se candidatará (Crédito:Dida Sampaio)

Lula é pragmático, tem um grande faro político e pode voltar a adotar um compromisso com a responsabilidade econômica. Fez isso em seu discurso, ao dizer “não tenham medo de mim”, repetindo o que havia praticado em 2002, quando vestiu o figurino do “Lula paz e amor”. Mas sua ação nos últimos anos, ao impedir que novas lideranças surgissem em seu partido e na própria esquerda, submetendo essas forças à sua reabilitação pessoal, sinalizam que seu projeto é pessoal, não para o País. Pode radicalizar sua posição após uma eventual reeleição. Disse que a liberdade de imprensa é um “pilar da democracia”, mas em 2017 já declarou que, se retornasse ao poder, faria a “regulação da mídia”— um eufemismo para censura. A atual direção do seu partido é submissa e entusiasta da ditadura venezuelana, por exemplo. O PT foi moldado para servir ao seu líder, tendo encolhido nos últimos anos por causa disso. Mesmo assim, apesar de sua popularidade, ainda há dúvidas sobre a força que terá no pleito. Para os empresários, o risco Lula é parecido com o custo Bolsonaro, já que o ex-presidente pode reviver políticas econômicas desastrosas.

Para os planos do PT, é crucial fugir da imagem de extremismo. Mas a polarização foi criada no ambiente político pelo próprio partido, que pregou o impeachment de todos os presidentes não petistas e criou a política do “nós contra eles” para estigmatizar qualquer oposição. “O PT não pode ter medo de polarizar. Tem que ter medo de não polarizar e ficar esquecido”, disse em seu pronunciamento. Está correto. O partido sempre usou a polarização como estratégia, e o resultado é o que se vê: a formação da falange bolsonarista, que flerta com a ditadura e seria inconcebível nos primeiros anos de redemocratização. Se uma solução de centro não for alcançada, o País permanecerá refém do bolsopetismo. Pior, o petismo pode, assim como aconteceu com o Mensalão e o Petrolão, garantir a institucionalização da corrupção.

Golpe na segurança jurídica

Ainda pode ocorrer uma reviravolta jurídica nas decisões de Edson Fachin e da Segunda Turma do STF. As duas podem ser levadas ao Plenário pelo presidente do STF, Luiz Fux, após um eventual pedido da PGR. Para o ministro Marco Aurélio Mello, a decisão de Fachin “foi uma verdadeira bomba atômica” e precisa ser levada ao Plenário. Fux pertence à ala defensora da Lava Jato. No colegiado, o fiel da balança deve ser o ministro Alexandre de Moraes. A questão jurídica propriamente dita permanece. O imbróglio representou um golpe na segurança jurídica. O STF age ao sabor das circunstâncias políticas, fora da lógica jurídica. Pior: esse cálculo político colabora para agravar a crise da pandemia, pois o País deveria estar centrado em combatê-la. O STF deveria ser fator de previsibilidade, mas no fim propicia instabilidade e abre espaço para teorias conspiratórias. Utilizar mensagens de autoridades roubadas por hackers é uma flagrante subversão da lei. Gilmar Mendes citou algumas dessas mensagens em sua sentença, apesar de dizer que elas não foram usadas para fundamentar sua decisão. É apenas um jogo semântico. Se essa tendência não for revertida, os desdobramentos serão nefastos. Já há articulação para restringir o poder de investigação do Ministério Público. A Lei da Ficha Limpa já está na mira do Centrão. A PEC da Imunidade, que blinda parlamentares de ações judiciais, também é prioridade de vários partidos.

Divulgação

A proposta de volta da prisão em segunda instância, que já era difícil, deve ser abandonada. O próprio Gilmar Mendes já anunciou que é preciso “reformular toda a Justiça Federal“. A introdução do juiz de garantias, uma temeridade em um sistema judicial que já tem enormes deficiências, deve ser acelerada. Ao invés de modernizar e tornar mais efetiva a Justiça, essas medidas devem aprofundar os vícios que atrasam o País: ineficiência, excesso de recursos, prescrições, impunidade e acesso privilegiado para políticos e ricos. Tachar a Lava Jato de “maior escândalo judicial da história”, como fez Gilmar Mendes, é jogar uma pá de cal na tentativa mais consistente e eficaz já empreendida de desarmar redes criminosas que assaltam os cofres públicos há décadas. Esse é o verdadeiro escândalo que a sociedade deseja enfrentar.

 

 

 

 

Istoé

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