Vítimas da seca recebem água contaminada em caminhões-pipa

 

Um crime contra a saúde de pessoas carentes!

No meio do agreste nordestino, perto de um rio seco, e de famílias que sofrem com a falta d’água, um tanque de combustíveis está à venda. O preço: R$20 mil. “Se for dinheiro, dá pra baixar. Botar em R$17 mil, R$18”, diz o vendedor.

Até um ano atrás, o tanque era usado para estocar álcool e gasolina. A lei manda que um tanque desses, quando esgota sua vida útil, seja incinerado, destruído. Não pode transportar mais nada. Mas dois homens dizem que dá pra carregar água tranquilamente.

“Tanque para combustível jamais pode ser usado para armazenar ou transportar água. Sempre vai causar problema de saúde. Inacreditável a cor da água”, afirma Anthony Wong, toxicologista da Faculdade de Medicina da USP.

Durante dois meses, foram investigadas denúncias graves, envolvendo programas de distribuição de água em caminhões-pipa.

O principal responsável pela distribuição de água no semi-árido brasileiro é o Exército, que coordena a “Operação carro-pipa”.

São 835 cidades, em nove estados, totalizando quase quatro milhões de pessoas. Este ano, o governo federal já gastou mais de meio bilhão de reais nesse programa, que conta com cerca de seis mil “pipeiros”, como são chamados os caminhoneiros que distribuem a água.

Cada um recebe do Exército um pagamento de até R$15 mil por mês.
Sem saber que era gravado, o pipeiro, contratado pelo Exército assume que o tanque dele já armazenou combustível e era subterrâneo: ficava debaixo das bombas de gasolina.

Números da Polícia Rodoviária Federal revelam: nos últimos dois anos, já foram identificados 70 caminhões-pipa suspeitos de transportar água em tanques que já armazenaram combustível.

“O uso dele era de veículo de transporte de combustível. As características, a ferrugem, o desgaste do material, o tipo de corte interno”, afirma Sylvio Jardim Neto, da polícia Federal.

“Nós fizemos um relatório de todo o levantamento e encaminhamos para o Ministério Público”, diz Vera Lúcia Pretto Cella, superintendente da Polícia Rodoviária Federal de Alagoas.

Os tanques subterrâneos de postos de gasolina são geralmente cilíndricos e com divisões interna.

Tanque, ainda com terra, num posto desativado, em Palmeira dos Índios, Alagoas foi encontrado.

Repórter – Foi desenterrado há quanto tempo?
Dono do tanque – há uns oito meses.
Repórter – ficou quanto tempo lá embaixo?
Dono do tanque – lá embaixo, acho que foi, mais ou menos, um ano e meio, dois anos.
O homem que negocia o tanque por R$20 mil diz ao nosso produtor que já vendeu outros quatro.

Repórter- Os caras que compraram os outros foram pra carregar água?
Dono do tanque – Foi pra carregar água. Pra operação pipa, no caso.
Ele fala que, para entrar no programa do Exército, o tanque tem que ser modificado numa oficina.

Nesta, um mecânico nos atende diz como transformá-lo num caminhão-pipa.
“Tem que diminuir ele, cortar ele. Aí, rebaixa ele e ele fica bem rebaixadinho”, conta o mecânico.

Repórter – Você já fez muito isso?
Mecânico – Já, já.
Com a ajuda da computação gráfica, é possível entender melhor como o tanque ficaria.
Repórter-  Quanto vai cobrar pra fazer isso pra gente?
Mecânico – Quatro mil ‘conto’.
Repórter- Quatro mil?
Mecânico – É.
No preço, está incluído um “serviçinho”. Diz o mecânico que é pra tirar as sobras do combustível.

Repórter- Lava com sabão.
Mecânico – Só sabão?
Repórter- Sabão com água, né?

O dono do tanque confirma.
“Não sai com sabão, não sai com detergente, não sai com soda e não sai com ácido. Faz parte permanente da estrutura já do tanque”, explica Anthony Wong, toxicologista da Faculdade de Medicina, USP.

Ao saber que se tratava de uma reportagem, o dono do tanque não apareceu mais.

“Você não pode lavar um caminhão e achar que ele está bem. A água vai estar contaminada e não é adequada para o consumo humano”, explica Pedro Mancuso, engenheiro e professor da Faculdade Saúde Pública/USP.

Quem bebe dessa água pode ter diarreia e até câncer.
“Pode provocar tumores em qualquer órgão do corpo: coração, pulmão, fígado  principalmente, baço”, afirma o toxicologista.

Entre maio e agosto, houve uma epidemia de diarreia em Alagoas. Foi a única registrada no Brasil nos últimos 10 anos:131 mortes, e um total de mais de 52 mil casos.

Dona Maria foi uma das vítimas. “Aqueles enjoo, sem querer comer nada e enfraquecendo e a gente levando no médico, mas infelizmente não teve como vencer”, conta José Silva Balbino, filho de dona Maria.

Durante a epidemia, não foram feitos testes para detectar combustível. Mas os laudos apontaram que a água estava contaminada por fezes e bactérias.

“A água que está sendo transportada pelos caminhões-pipa e a qualidade desses caminhões-pipa, com certeza, foram preponderantes para essa epidemia de diarreira”, afirma Micheli Tenório, promotora de Justiça.

Um caminhonheiro de Alagoas diz trabalhar no Exército há quatro anos e assume que o tanque dele, que hoje leva água, era de combustível. E diz que o pessoal do Exército sabe disso.

“Eles sabem, porque eles vêm a proporção do tanque. Quem é que não conhece, né?”, diz.
De acordo com o Ministério Público, existem denúncias que indicam que oficiais e ex-oficiais do

Exército cobram propina de caminhoneiros. Segundo as acusações, dando dinheiro, o motorista consegue ser contratado e passa por uma fiscalização menos rigorosa: o veículo é liberado para o serviço, mesmo sem condições.

“Se chegar ao fim e ao cabo dessas investigações e que tudo indica, nós chegaremos nessa conclusão de que houve esse episódio lamentável de propina, de corrupção, isso é realmente repugnante”, afirma Michelini Tenório, promotora de Justiça.

Além disso, os pneus estão carecas e a placa, adulterada. Mesmo assim, o veículo passou na vistoria do Exército.

Em Alagoas, uma denúncia de fraude foi apurada. A empresa Wash Service ganhou duas concorrências públicas do Exército para distribuir água. Entre 2012 e 2013, já recebeu mais de R$ 4,2 milhões.

No lugar onde seria a sede da empresa, em Maceió, não há nenhuma placa de identificação e não encontramos ninguém.

A mais de 250 quilômetros, em Senador Rui Palmeira, fica o endereço de uma sócia.
Janaína da Conceição Silva, que seria sócia da empresa que ganhou a licitação, não é encontrada em casa pelo Fantástico. A mãe dela nos recebe.

Repórter – A senhora sabe se ela é dona de alguma empresa?
Mãe – Não. Quem tem empresa é o marido dela.
Repórter- Ah, o marido?
Mãe – Sim. O Sargento Moreira.

William dos Santos Moreira foi sargento do Exército. Ele pediu dispensa da corporação em setembro deste ano. Portanto, ainda era militar na época que a Wash Service ganhou a concorrência pública. A lei das licitações determina que servidor não pode participar de concorrências na instituição em que trabalha. E o regimento do Exército ainda proíbe que o militar tenha outra atividade profissional.

No contrato social, o nome do sargento Moreira não aparece. Por telefone, Janaína – a mulher dele – disse: “A empresa é no meu nome mesmo”.

Repórter – E quem tomava conta era o seu marido? O sargento Moreira?
Ela não responde.
Fomos a outras casas da região.
Repórter- Qual a última vez que chegou água para o senhor?
Agricultor – Há mais ou menos uns 60 dias.

Já na casa da sogra do Sargento Moreira: “Agora, não falta não. Porque ele manda colocar”, diz ela.

“Quem?”, pergunta o Repórter.

“O Sargento Moreira”, responde a sogra.
Procuramos o ex-militar durante três dias. Deixamos vários recados, mas ele não nos atendeu. Um motorista contratado pela Wash Service tem que abastecer a comunidade Pai Mané – na cidade de Dois Riachos, Alagoas, quatro vezes por semana. Mas os moradores dizem que isso não acontece.

Repórter- Ficam quantos dias sem água?
Senhora – Às vezes, passam oito dias, 15 dias, um mês. Os quatro caminhões na semana, estava ótimo. Não carecia mais.

“Isso é crime. Você está lidando com água, que é vida para uma população que já é tão ressentida, que é a população do sertão nordestino”, diz Michelini Tenório, promotora de Justiça.

“Nós vamos abrir um procedimento administrativo para apurar essa possível irregularidade. E, caso constatada, serão adotadas as penalidades conforme a lei”, diz o coronel Valdênio Barros da Rocha, coordenador da operação carro-pipa do Exército.

 

 

Reportagem: Fantástico/Globo

 

 

2 comentários sobre “Vítimas da seca recebem água contaminada em caminhões-pipa

  1. A culpa é do próprio governo federal, que gasta milhões e milhões do dinheiro público em ações desordenadas, sem fiscalização onde resulta em roubalheira e ineficiência das ações e programas emergenciais. O certo seria, construções de represas e poço artesianos, tornando assim menos degradante a industria da seca nordestina.

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